O cinema nacional, desde o período da Retomada, tem o pé muito fincado na realidade. Começou com grandes dramas ficcionais da vida real, como Central do Brasil e Cidade de Deus, e agora está numa forte onda de neorrealismo, onde atores profissionais são substituídos por amadores e os limites entre documentário e ficção ficam esfumaçados. São boas, ousadas e interessantes, então, as iniciativas que saem dessa receita fílmica no País.
Além do Homem, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 28, é um desses casos. Dirigido pelo estreante Willy Biondani, o longa-metragem acompanha a jornada de Alberto (Sérgio Guizé), um brasileiro que tem toda sua vida fincada em terras francesas. É com desgosto, então, que ele aceita a incumbência de voltar à terra natal para escrever um livro-reportagem sobre um francês (Pierre Richard) que foi comido por canibais.
O longa-metragem compõe um roteiro assinado por Willy, Eliseo Altunaga (Violeta foi para o Céu) e Daniel Tavares que "tropicaliza" o conceito de super-homem elaborado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Nessa teoria, também chamada de "além do homem", é desenvolvida a corrente de pensamento sobre a pessoa que sai de seus limites e quebra "uma casca". E, veja só, Nietzsche opõe essa idealização à figura do europeu moderno, que está conformado, prende-se em si mesmo e é aferrado ao tempo.
Nessa toada entre tropicalizar o "além do homem" de Nietzsche e contar a jornada de redescoberta de Alberto, encontramos uma trama delicada e tradicionalista sobre o interior do Brasil, que resvala na comédia, na fantasia e no absurdo. Ainda que um pouco dispersa demais e com alguns elementos soltos dentro de sua narrativa, essa história se desenvolve de maneira natural e com facilidade na tela, principalmente por conta das boas atuações de Guizé (Uma Loucura de Mulher) e Fabrícia Boliveira (Vazante).
O modo de filmar de Biondani também é curioso, sempre transitando entre o real, o onírico e o extremamente fantasioso. Lembra um pouco o quadro geral do recente Quase Memória, de Ruy Guerra. A diferença é que o longa de Ruy celebra o reencontro de uma identidade própria do protagonista, perdida nos devaneios da memória, enquanto Além do Homem celebra a redescoberta de uma identidade ampla e nacional. Interessante como, de alguma forma, os dois trabalhos dialogam, mesmo tão distintos.
A aposta na filosofia existencial que permeia a trajetória do personagem, e a coragem em engrandecê-la ao final sem cair nas amarras do cinema convencional, faz com que o filme tome uma força interessante. Pena que a história que recheia essa estrutura nietzschiana seja tão fraca: ainda que Otávio Augusto e Flávia Garrafa estejam ótimos, pouca coisa saberia dizer sobre a história de Alberto na cidadezinha onde tudo se passa. Fica mais vívida a estrutura ampla e geral do filme do que seus percalços, minando o impacto geral.
Vale ressaltar que os aspectos técnicos são de ponta: a trilha sonora original, de Egberto Gismonti, trafega entre a bossa nova e sons mais tribais, compondo a ambientação do filme. A fotografia, compartilhada entre o francês Olivier Cocaul e o paulista Walter Carvalho.
Assim, Além do Homem é um bom filme, uma boa surpresa e uma boa estreia de Willy Biondani, que conseguiu traduzir anseios reais do Brasil -- como a falta de afeto e a crescente perda de identidade de parte da população -- numa trama carregada de fantasia e onírico. É uma mostra de como a alegoria e a filosofia, quando bem dosadas, podem trazer ótimos questionamentos à condição real de uma sociedade. Vale a pena assistir.
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