Assim como os grandes clássicos, obras-primas são difíceis de serem definidas no cinema. Alguns filmes já nascem com grande potencial dentro de seu gênero fílmico, como o recente It: A Coisa e Mãe!. No entanto, são apenas apostas que sites de críticas -- como o próprio Esquina -- fazem por aí. É tudo previsão, que pode ou não se concretizar com o passar do tempo. Agora, outro filme acaba de entrar nessa discussão: A Forma da Água, produção de Guillermo del Toro.
Assim como as outras obras do cineasta, A Forma da Água se passa num universo onírico e fantasioso. É um filme sobre príncipe e princesas, uma fábula moderna, mas que ganha formas bizarras sob a ótica do diretor mexicano. No centro da história, Elisa (a excepcional Sally Hawkins, de Maudie), uma faxineira muda que trabalha para um laboratório militar em plena Guerra Fria. É lá que ela encontra -- e se apaixona -- por um criatura aquática (Doug Jones, de Star Trek: Discovery).
A partir daí, tudo acontece. Ela, junto com seus amigos Zelda (Octavia Spencer, hilária) e Giles (Richard Jenkins), tentam salvar a pele do monstro, que deve servir como cobaia de um experimento comandado pela cruel Strickland (Michael Shannon) e Hoffstetter (Michael Stuhlbarg, que está em três indicados ao Oscar). É, basicamente, uma luta contra o tempo permeada com uma história de amor e resistência. É tudo que Del Toro sempre amou contar nos cinemas.
O filme, como já disseram muito por aí, evoca elementos de filmes clássicos, como A Bela e a Fera, O Monstro da Lagoa Negra e até um pouco de Edward Mãos de Tesoura. É, afinal, uma fábula. E Del Toro, como sempre, cria um universo impressionante para validar essa ideia dentro de sua proposta. A fotografia, de tons esverdeados, já passa em primeira-mão o sentimento de solidão que permeia a maioria dos personagens, dando uma dimensão da história.
Além disso, Del Toro não se furta em criar cenários belíssimos, ainda que menos grandiosos que A Colina Escarlate e O Labirinto do Fauno, que ajudam o espectador a entrar em toda atmosfera do filme. É de encher os olhos e merece a indicação -- e a provável vitória -- na categoria de Melhor Direção de Arte. A criação do monstro, que não tem nome, também tem o selo de qualidade Del Toro. Apesar de muito parecido com outras criaturas, seu visual é memorável.
No entanto, vamos ao que interessa. Em A Forma da Água, a trinca técnica de um filme (o roteiro, a direção e as atuações) funciona como um relógio suíço. Vamos começar falando da direção de Del Toro. Aqui, ele mostra que sua carreira serviu como bagagem criativa. É possível ver referências visuais e estruturais à Hellboy, O Labirinto do Fauno, A Espinha do Diabo. É gratificante ver um diretor usar sua experiência para dirigir um filme com toda essa firmeza.
O roteiro, escrito pelo próprio Del Toro e por Vanessa Taylor (de Divergente, pois é), conta com mais acertos do que erros. A história, apesar de quadrada demais e sem pontos de ousadia narrativa, ajuda o espectador a entrar na vida de Elisa, mesmo com um número reduzido de falas, e a entender a estranha e desconexa paixão que nutre pelo monstro. Se fosse nas mãos de outro roteirista esses elementos seriam um prato cheio para uma bomba cinematográfica.
No entanto, há de se pontuar aqui que o filme conta com alguns probleminhas nesse ponto. Há algumas subtramas sobrando na história, como uma jornada sem propósito de Giles e algumas passagens sobre espionagem que não chegam a lugar algum. O foco do filme só não é perdido pela naturalidade com que a história flui, fazendo com que todos elementos narrativos participem de uma só história. Sem dúvidas, poderiam ter cortado quinze minutos do longa.
O grande ponto alto do filme, porém, são os atores. Sally Hawkins tem o grande papel de sua carreira -- e olha que ela fez Blue Jasmine e Submarine. Ela consegue passar várias emoções apenas com o olhar, já que toda a sua comunicação é feita por meio de libras -- uma cena em específico, na qual ela descobre a criatura, é absurdamente bem interpretada, mostrando a força da atriz.. Se não fosse Frances Mcdormand, o Oscar de Melhor Atriz já seria de Sally.
Outro que rouba a cena é Michael Shannon. Ele faz um vilão estereotipado, mas que passa a mensagem necessária para a audiência. Causa raiva, apreensão, medo, angustia. Sem dúvidas, ele merecia uma indicação ao Oscar -- há tempos já devia ter colocado a estatueta na prateleira. O mesmo vale para Doug Jones, mestre em interpretar criaturas. Ele passa os sentimentos por meio de gestos corporais e, assim como Hawkins, sem uma palavra. Ele é sensacional.
Os atores coadjuvantes (Spencer e Jenkins) também estão ótimos em seus personagens, criando uma ótima trinca junto com Hawkins -- afinal, seus personagens são opostos e, na tela, funcionam muito bem. No resultado final, a dupla ajuda a alavancar a qualidade de A Forma da Água e a aumentar a dramaticidade. Infelizmente, não vai ser dessa vez que os dois vão levar o Oscar -- Allison Janney e Sam Rockwell devem faturar a estatueta. Mas merecem a indicação.
Por fim, há um outro fator a ser parabenizado: a estupenda trilha sonora de Alexandre Desplat, que já ganhou um Oscar por O Grande Hotel Budapeste. Ele consegue reproduzir o sentimento da história para os acordes, lembrando os bons tempos de John Williams. É a trilha perfeita. Além disso, há uma boa seleção de clássicos do passado, como Babalu e o imbatível Chica Chica Boom Chic, de Carmen Miranda. São canções que se integram com a trilha original.
Enfim, A Forma da Água é um filme esplêndido em direção, direção de arte, fotografia, trilha sonora, atuações e roteiro. Tem um ou outro erro, mas nada que tire o seu brilho e o cargo de um dos melhores filmes do ano -- ainda que, a meu ver, não seja um dos melhores de Del Toro, nem dessa safra do Oscar 2018. Agora, é esperar para ver como o filme passará os anos e se terá força para se tornar um clássico. Sem dúvidas, já virou obra-prima no coração de muita gente.
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