De nome, você pode até não lembrar de Hiro Kawahara. No entanto, sem dúvidas, você já viu alguma ilustração do desenhista e quadrinista brasileiro. Afinal, ao longo de 25 anos, ele foi o principal responsável por dar cor e vida às bandejas da rede de fast food McDonald’s, onde ele fazia desenhos de acordo com o tema do mês -- seja de esportes, exploração do espaço ou até invencionices infantis, como o exercício de imaginar o que a pessoa faria se fosse um gigante.
Agora, porém, Kawahara foca sua atenção em um outro projeto, mais autoral e ainda mais belo do que é encontrado nas bandejas da rede de lanchonetes: a história em quadrinhos O Bestiário Particular de Parzifal, que encerra a sua campanha de financiamento coletivo nesta quarta-feira, 19. Com o traço marcante do desenhista brasileiro, a HQ conta a história de uma garota que é criada no meio de uma floresta por uma mãe imatura e que vive fora da realidade.
“Eu gosto quando uma pergunta ou uma ideia explode em minha cabeça como um milho de pipoca’”, conta Hiro, em entrevista ao Esquina. “Quando terminei de fazer meu quadrinho anterior, eu estava com uma ideia dessas em minha mente: “e se crianças pudessem criar seres com a imaginação e tivessem que arcar com as consequências deles no mundo real?”. A ideia parecia ótima, mas quando terminei de escrever, ela tinha se tornado obscura demais. Eu queria o oposto disso.”
Agora, a história está pronta -- e prestes a ser publicada. Por isso, o Esquina conversou com Hiro para entender um pouco mais de seu processo de criação e, claro, para entender um pouco mais de sua carreira até aqui. E não se esqueça de apoiar o projeto do ilustrador no Catarse, que termina nesta quarta-feira, 19. Basta clicar neste link ou entrar na página da plataforma de financiamento coletivo para ver mais informações e entender mais desse projeto.
Esquina: Primeiro, vamos falar de seu projeto no Catarse: como surgiu a ideia d’O Bestiário Particular de Parzifal?
Hiro Kawahara: Eu gosto quando uma pergunta ou uma ideia explode em minha cabeça como um milho de pipoca. Costumo chamar isso de “fiapo de história”. Quando terminei de fazer meu quadrinho anterior, Yowiya, eu estava com um desses fiapos em minha mente: “e se crianças solitárias pudessem criar seres com a imaginação e tivessem que arcar com as consequências deles existirem no mundo real?”. A ideia parecia ótima, mas quando terminei de escrever a história, ela tinha se tornado obscura e pesada demais. Eu queria o oposto disso. Também percebi que não havia inserido a figura da mãe em nenhum momento, e decidi torná-la o personagem principal. A pergunta havia se tornado: “o que aconteceria com uma criança que foi criada por amigos imaginários ao crescer e se tornar mãe?”
Uma das respostas saiu naturalmente, sem pensar muito: ela seria ingênua como Percival. Ele foi o cavaleiro que encontrou o Santo Graal, uma história que sempre me fascinou. Percebi que havia criado uma “Percival” que deu errado. Daí o nome da personagem principal, nem questionei se era um nome masculino. O resto da história foi sendo criada sozinha.
Estou vendo, cada vez mais, um movimento de grandes quadrinistas indo para o financiamento coletivo. Qual motivo?
Normalmente, o caminho para alguém editar um quadrinho no Brasil era batalhar para uma editora se interessar pelo seu projeto, assinar um contrato e receber pela participação nas vendas. Ou então bancar a impressão do próprio bolso e rezar para que as vendas, feitas em eventos ou de porta em porta, pelo menos cobrissem os gastos de produção, o que nem sempre acontecia.
Com o surgimento do financiamento coletivo, as coisas ficaram mais fáceis. É um recurso que dá muita liberdade e tranquilidade para alguns quadrinistas. O custo de produção já é 100% bancado pelas campanhas, o que significa que pelo menos prejuízo o autor não terá. O crowdfunding funciona como uma pré-venda. Depois de entregar os livros para os apoiadores, o restante ele pode vender como quiser, não há prejuízo. Outra vantagem é a divulgação, os sites de financiamento coletivo anunciam seu projeto, alcançando um público que vai além da sua rede social, peça fundamental para uma campanha bem realizada.
Nesse formato, o autor também tem liberdade total com a obra. Mas o revés é que, sem a presença da figura do editor, o autor tem que ter cuidado redobrado com questões de conteúdo, técnicas, comerciais e logísticas.
O financiamento coletivo é uma ótima solução para quadrinistas independentes, mas não é um caminho de rosas. Há uma “seleção natural” que acontece nas campanhas. As que atingem a meta são poucos, justamente aqueles que são mais consistentes: uma boa história, desenhos cativantes, e uma apresentação sólida do projeto fazem a diferença. Ainda há um amadorismo muito forte, uma ingenuidade de acreditar simplesmente porque há um autor também haverá consumidores. Com ou sem financiamento coletivo, seu projeto precisa parecer profissional e maduro. E a postura do autor também.
As webcomics também são uma solução para publicar quadrinhos. Embora sejam em sua maioria gratuitos, essa fórmula faz com que quadrinista sejam muito conhecidos. Isso ajuda muito no momento em que ele decide migrar as histórias para papel e tinta, uma vez que ali já existe uma base de fãs e leitores formada.
Você é muito conhecido por grande parte do público por conta de seu trabalho no McDonald’s. Como foi que você começou a ilustrar as bandejas?
Há 25 anos, eu trabalhava na agência que cuidava da conta do McDonald’s. Eu era diretor de arte e não fazia ilustrações. Certa vez, fui comer no McDonald’s sozinho e não levei nada para ler. As lâminas de bandeja, naquela época, só tinham propaganda de produtos e eu imaginei que era um espaço que poderia ser mais útil, afinal quem está sentado e comendo não precisa ficar recebendo mais propaganda. Criei uma lâmina cheia de ilustrações e curiosidades, e foi aprovada pela diretoria.
A rotina no primeiro ano foi essa, eu apenas criava as lâminas de bandeja e o ilustrador Adelmo Barreira fazia os desenhos. Porém, ele teve que se ausentar do trabalho e eu fiquei com uma batata quente nas mãos. Não havia ninguém que conseguia fazer os desenhos no prazo, e a solução foi eu acumular com a função de desenhista. Eu desenhava à medida que criava, e funcionou. O que era para ser temporário se tornou fixo, e ilustrei quase todas as toalhinhas de bandeja, mais porque eu retomei o gosto por desenhar do que pela necessidade em si.
Sempre achei incrível como temas banais se tornavam fascinantes em um espaço pequeno. Fazer as bandejas é desafiador? Qual o grande desafio a ser transposto neste tipo de trabalho?
São dois os grandes desafios. O primeiro é o de ser um homem-banda com esse trabalho. Não faço apenas as ilustrações, eu sempre fiz a pesquisa, os textos, a diagramação, a criação, a argumentação para aprovar com o cliente, e também a arte final. Se fosse apenas fazer os desenhos, seria algo muito fácil. Mas esse acúmulo de funções me tornou o que sou hoje. Lâminas de bandeja não apenas definiram minha carreira como ilustrador, mas me ensinaram também a sentar na mesa com o cliente para defender uma ideia, e também a ser um bom diretor de arte. A questão de criar temas vindos de temas banais nunca foi problema, pelo contrário, é estimulante. Com criatividade não existem temas banais.
O segundo desafio é a natureza do trabalho. Ele é autoral apenas em parte, é uma peça comercial, propriedade de uma empresa. Existem limitações tanto no tema como na natureza dos desenhos. Essa restrição é muito mais evidente hoje na escolha dos temas a maneira que os textos são escritos, mas ainda há muita liberdade para fazer os desenhos da maneira que eu quiser, contanto que haja bom senso.
Se fosse para escolher apenas um trabalho de toda sua carreira, qual seria? Qual te marcou mais?
Embora as lâminas de bandeja tenham sido meu maior trabalho até hoje com 300 modelos diferentes, cada uma com uma impressão entre 12 a 14 milhões, eu quero ser lembrado pelas histórias que irei contar com livros e quadrinhos, onde eu consigo 100% de autonomia de voo, além das aulas de desenho que eu ministro. Estas são as duas coisas que eu sigo com mais paixão na minha carreira, e me fazem ser uma pessoa melhor.
Quais as suas influências?
As minhas influências são intermináveis, todo dia surge alguém novo com um trabalho fascinante. Mas sempre cito esses três gigantes, que são referências além do desenho: o pedagogo Gianni Rodari, autor de A Gramática da Fantasia, pela maneira surpreendente lúdica que ele aborda a mentalidade e o processo criativo infantil, algo que incorporei de maneira profunda em todo meu trabalho; Al Hirschfeld, talvez o maior caricaturista que já existiu, pela emoção que o trabalho dele me passa, que mistura delicadeza, precisão e minimalismo, algo que me inspira a todo momento; e os trabalhos de Hayao Miyazaki. Quando não tenho inspiração, ou me sinto no fundo da lama, eu assisto os trabalhos dele e sinto como se tivesse feito uma refeição, satisfeito e feliz.
Quais seus planos futuros?
Quadrinhos e livros! Já tenho dois projetos para fazer no ano que vem, um deles a quatro mãos, com um roteirista de primeira. O outro ainda são milhos na fila para virarem pipoca em minha cabeça.
Eu quero agora me aprofundar nos quadrinhos de forma muito mais profissional. Frequentar mais eventos e feiras de quadrinhos é um dos objetivos. Quero também vender meu trabalho para uma editora, tentar negociar as histórias para outros países, explorar estilos, temas e modos de contar histórias tanto no texto como no desenho. Tenho histórias para fazer até os próximos 30 anos, e quero que cada uma seja mais coesa e madura que a outra.
Também quero continuar dando aulas até onde puder. São coisas que me complementam.
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