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Amilton Pinheiro *

Cine Ceará 2019: Resistências contra a barbárie


Desde que Dilma Rousseff se reelegeu em 2014, o País entrou em rota de colisão com a democracia e com a estabilidade econômica, política e social. Explica-se: por conta da polarização gerada na eleição entre a candidata do PT e o derrotado Aécio Neves, do PSDB, as forças “ocultas” do poder começaram a atuar para barrar a vitória do PT, que tinha logrado êxito nas últimas quatro eleições para presidente da República. Era demais para as elites do Brasil com seu poder para estancar governos desobedientes.

Esse triste capítulo da nossa história é conhecido por todos: o Impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o vice Michel Temer assumindo a presidência, o agravamento da crise econômica e a ascensão da extrema direita com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018. Ou seja, um país jogado no olho do furacão. E tudo que veio por conta disso.

São sobre esses fatos trágicos que se debruçam os dois filmes exibidos na noite de domingo, 1, na mostra competitiva de longas do Cine Ceará. Primeiramente, o documentário Ressaca, de Vincent Rimbaux e Patrizia Landi, acompanha os atrasos de salários dos artistas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, entre 2016 a 2017. E, depois, a ficção Notícias do Fim do Mundo, do cineasta cearense Rosemberg Cariry, que mesmo tendo sido realizado em 2009, ou seja, quando Lula ainda exercia seu segundo mandato, e montando ao longo desses quase dez anos, consegue dialogar muito com nossa enfermidade civilizatória atual, como se o filme antevisse a catástrofe que iria recair sobre nossas cabeças. Uma espécie de filme premonitório do Brasil.

Entreatos de Ressaca

O documentário Ressaca se estrutura em capítulos. Parte das reuniões entre os artistas do Theatro Municipal, após os atrasos salariais, e acompanha alguns deles para mostrar as consequências desses atrasos em suas vidas pessoais e no exercício da profissão.

Filmado em preto e branco, e com uma ágil câmera na mão na maior parte das vezes, o longa mostra as tensas conversas e discórdias entre eles, perdidos e ao mesmo tempo perplexos com toda aquela situação inesperada e inusitada. E tendo como pano de fundo o impeachment da Dilma, o caos no governo do Rio de Janeiro e o governo de Michel Temer. Tudo isso vai culminar em diversos protestos organizados pelo corpo de artistas do Theatro para resistir ao desmonte de uma das principais casas teatrais do País.

O documentário tem um ritmo, agilidade na captação das imagens por uma câmera segura. Além de personagens cativantes, que conseguem nos envolver com seus dramas e nos alertar para grave situação do Theatro Municipal naquele momento -- apesar que pouca coisa melhorou desde que eles filmaram entre 2016 e 2017. Os diretores, para dar um pouco de fôlego ao espectador, inserem algumas danças dos bailarinos do Theatro, seja na rua, diante da faixa de pedestre, ou nos próprios ensaios.

Outro acerto do documentário é acompanhar um dos porteiros do Theatro Municipal, João, que vive em uma comunidade do Rio de Janeiro com os dois netos – o filho dele, e pai dos netos, morreu assassinato – entre a violência cotidiana desses lugares e a convivência com a arte produzida naquele “palácio das ilusões”. Ao eleger um funcionário do lugar como um dos personagens centrais, o documentário mostra que para além das dificuldades de funcionamento de um lugar como o Theatro Municipal, e o padecimento do seu corpo artístico, existem outras mazelas, como a social e o preconceito racial que nos dizem muito do Brasil do pretérito do futuro ao impor aos negros o esfacelamento de seus sonhos mesmo que sejam o de apenas sobreviver.

Alegoria anárquica da republiqueta

Rosemberg Cariry não é somente o diretor mais longevo e importante do Ceará. É, também, um incansável realizador que resiste ao condicionamento geográfico do seu lugar de ofício. Nunca deixou de filmar no seu estado, com todas as dificuldades que isso possa representar como a falta de dinheiro, acesso a editais públicos, visibilidade e problemas para lançara seus filmes.

São doze longas realizados. Entre eles, Corisco & Dadá, de 1996, seu filme mais conhecido e de maior sucesso; e Os Pobres Diabos, de 2013, um dos últimos que dirigiu. As filmagens de Notícias do Fim do Mundo aconteceram em 2009 e, ao longo desses quase dez anos, o diretor foi montando seu filme, com a ajuda filho, também cineasta e diretor de fotografia, Petrus Cariry. Todo esse esmero não foi em vão. Cariry não tinha ainda a montagem definitiva, para além das dificuldades financeiras de realizar o filme.

O longa-metragem trata de um lugar hipotético, que convive com a pós-modernidade barroca de um mundo de inimigos reais e fictícios, com terrorismo por toda parte e uma babel de comunicação num mundo sucateado. Para lutar contra toda a opressão, vinda de todos os cantos do mundo, só resta sequestrar um embaixador de Golem, e exigir dos líderes mundiais um mundo com justiça social e menos exploração

Numa classificação apressada, podemos dizer que Notícias do Fim do Mundo, é um filme de ação nos moldes de uma produção de Hollywood. Mas que subverte tudo, inclusive os arquétipos as construção dos personagens dessas produções.

Cariry atualiza a luta e resistência de um dos nossos personagens históricos, Antônio Conselheiro, ao moldá-lo na figura do seu protagonista, vivido pelo ator paraibano Everaldo Pontes, em bela atuação, que com sua trupe de reisados, sequestra o embaixador de Golem. E saem numa jornada de um verdadeiro Exército de Brancaleoneo, num mundo apocalíptico e com o fim trágico já esperado. Nos destroços desse mundo pós-moderno e pós-barroco tudo vira sucata e alienação. E a subversão desse filme alegórico e anárquico de Cariry chega ao ápice quando a trupe de reisado vai literalmente parar num desses jogos eletrônicos de jovens.

Em sua Notícias do Fim do Mundo realizado em 2009, Cariry nos revela a tragédia que estamos vivendo atualmente no Brasil, mas ele é mais ambicioso e mostra as contradições do nosso processo civilizatório que vem culminando num mundo insustentável entre nações, população e preservação do meio ambiente.

 

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