Dando continuidade ao forte tom político da abertura do Cine Ceará, o primeiro dia da mostra competitiva de longa-metragem no sábado, 31, trouxe um belo e rigoroso filme. Foi Canção Sem Nome, de Melina León, diretora estreante em longas que tinha realizado dois curtas (Girl With a Walkman, 2007, e El Paraíso, 2009) antes dessa sufocante e lindamente fotografada produção do Peru, Espanha e Estados Unidos.
No longa, Georgina (uma Pamela Mendoza em estado de graça) tem seu filho, recém nascido numa clínica clandestina, roubado na capital do Peru, Lima, que é vista como lugar de opressão e dificuldades para o povo indígena e as pessoas que lutavam contra o governo. A via crusis dessa jovem para reencontrar seu filho é rigorosamente contada com uma fotografia e enquadramentos inebriantes e ao mesmo tempo sufocantes.
A história de Georgina e do repórter (Tommy Párraga) que tenta ajudá-la a encontrar sua filha é inspirada numa história real, dos violentos acontecimentos ocorridos em Lima, no Peru, no final dos anos 1980, com um governo “democraticamente” ditador e inúmeros grupos de milícias que sequestravam e matavam povos indígenas e inimigos políticos.
Pamela Mendoza revelou na coletiva de imprensa que sua mãe falava para ela, quando criança, que evitasse as ruas, pois homens “brancos” poderiam lhes fazer mal. Ela disse que cresceu ouvindo relatos de sumiços e mortes do seu povo. O pai da diretora, um conhecido jornalista na época, serviu de inspiração para o personagem do repórter.
O filme trata basicamente de identidade e da luta de um povo para preservar seus costumes e sua história numa América Latina que nunca soube cuidar das suas minorias e habitantes locais. Uma região que tristemente aprendeu a conviver com inúmeras e históricas injustiças sociais, e impôs governos ditadores ou pouco inclinados a dar oportunidades para todos, sempre uma castra de privilegiados, de uma elite que souber compor com governos corruptos e ditatoriais para continuarem no status quo.
É um filme com pintadas de gênero, terror-social, drama histórico, que fica impregnado de tons fúnebres pela fotografia desconcertante em preto e branco do diretor Inti Briones, o mesmo do ótimo e injustiçado Vazante. Aliado à fotografia, os enquadramentos próximo aos personagens, faz do espaço mais um dispositivo de repressão e opressão, além de uma tela reduzida para acentuar mais o engessamento da mobilidade social daqueles personagens, acuados por um país que não dá nada, nem uma identidade, seja o documento ou o reconhecimento de parte do seu povo.
Um filme sobre identidade e resistência, que transborda rigorosa linguagem técnica, desempenhos convincentes do seu elenco principal – com destaque para a magistral composição de Pamela Mendoza, que compõe em filigranas o tecido humano e social da sua personagem. Além de uma segura direção da diretora e do seu fotógrafo. Desde já o mais forte candidato aos principais prêmios do Cine Ceará, o Troféu Mucuripe.
Uma comédia ingênua
Além das mostras competitivas, e de exibições de produções do Ceará, o festival exibe sessões especiais, como a do filme de abertura, A Vida Invisível, e de encerramento, Pacarrete, de Allan Deberton, que saiu consagrado e com oito prêmios do Festival de Gramado realizado em agosto. Serão também exibidos Soldados de Borracha, de Wolney Oliveira, que participou da mostra competitiva do Festival de Documentários É Tudo Verdade em abril em São Paulo, e Maria do Caritó, de João Paulo Jabur, que ganhou sua estreia mundial no Cine Ceará.
O filme é baseado na peça homônima de Newton Moreno, que teve uma carreira de sucesso nos palcos durante cinco anos, com a mesma atriz que faz parte do longa, Lilian Cabral, conhecida mais por suas inúmeras novelas na Rede Globo. Antes da exibição do filme, Lilian foi homenageada pelo festival. Quando subiu ao palco, falou da sua satisfação em apresentar pela primeira fez o filme ao público brasileiro, de uma peça que foi escrita especialmente para ela.
O filme não é uma comédia rasgada. Muitos elementos são de um folhetim dramático, quando a ingênua solteirona, Caritó, descobre que é enganada por o homem que se apaixona. O próprio diretor reconhece que seu filme é um comédia-dramática. Talvez por conta dessa mistura de gêneros, o longa tem duas partes bem distintas, que dão o ritmo de sua história e por vezes o envolvimento do público que o assiste.
O público que estava presente na sala São Luiz recebeu muito bem Maria do Caritó, rindo e participando do filme nos momentos que ele pedia isso -- ou seja, nas gags engraçadas da personagem, principalmente na primeira parte, da sua busca por um marido e seus pedidos e brigas com alguns santos e santas.
O filme tem uma linguagem que o aproxima de um produto de televisão, não somente pelo envolvimento do seu diretor com produções da Globo, e de uma atriz que fez pouco cinema. Os dispositivos narrativos do filme trabalham nesse campo de uma obra televisiva, com sua textura e seus clichês usuais, tão exaustivamente testados na televisão, com personagens com poucas camadas, trilha sonora excessiva e enquadramentos comuns.
Outro aspecto frágil de Maria do Caritó é a sua segunda parte, quando as piadas, e, portanto, o riso do espectador, não rolam com tanta sequência como na primeira parte, com mais frescor e falas engraçadas. Ao tentar ser levado mais a sério, o filme escorrega na sua própria intenção de dramatizar e ser edificante com os percalços casamenteiros de sua personagem.
Mesmo tendo como referências sucessos populares e bem sucedidos do cinema brasileiro, como Lisbela e o Prisoneiro e Auto da Compadecida, o filme Maria do Caritó tem personagens menos cativante, e principalmente um texto mais fraco, que impõem limitações para o êxito de sua empreitada, fazer o espectador rir e se envolver com o filme até o fim.
Comments