“O pai abre a garrafa de conhaque, enche uma pequena taça de vidro, bebe tudo de uma vez. Não oferece ao filho. Pega a pistola e a analisa por um instante. Aciona o mecanismo que libera o pente para fora do cabo e o recoloca em seguida, como se apenas quisesse mostrar que a arma está descarregada. Uma única gota de suor escorre por sua têmpora chamando a atenção para o fato de que ele já não transpira por todo o corpo. Um minuto antes, estava coberto de suor. Prende a pistola na cintura da calça e o encara. Eu vou me matar amanhã. “
Confesso que sou um conservador da literatura nacional. Por algum motivo obscuro, sou preconceituoso com os novos autores brasileiros. Acabo dando uma preferência aos já consagrados Marcelo Rubens Paiva, Veríssimo, Mario Prata, Lygia Fagundes Telles. Porém, recentemente, tive a felicidade de ler uma obra de um autor novo e que me agradou de forma surpreendente. Daniel Galera me fisgou com a história de Barba Ensopada de Sangue. Esse autor, magicamente, tornou-se um dos meus autores preferidos. E tal fato se deu com razão.
Galera possui uma escrita sensacional. Barba Ensopada de Sangue pode ser lido em poucos dias, apesar de suas mais de 400 páginas. A história, iniciada por um tom de extrema melancolia, vai se desenrolando de forma magistral em frente aos olhos do leitor. As primeiras linhas narram o pai do personagem principal anunciando seu suicídio, que se dará no dia seguinte. Além do anúncio do suicídio, o pai pede que o filho, um humilde professor de educação física, sacrifique a cadela Beta, para que não sofra com a morte do dono.
O filho, que, mesmo sendo o personagem principal, não possui o nome revelado em momento algum, ignora o último pedido do pai e acaba se mudando de cidade, buscando esquecer sua recente tragédia pessoal e para solucionar um antigo mistério familiar: o aparente sumiço do avô na região de Garopaba, local onde o livro se passa. A partir desse momento que a trama me fisgou. A história, que aparentava se tratar de um intenso drama pessoal, acaba por se mostrar como sendo investigativa. Além disso, a emoção é permeada por toda a obra.
Outro fator que abrilhanta ainda mais a obra é a profundidade de todos os personagens. E quando digo todos, são todos mesmo. A cadela Beta, a que deveria ter sido sacrificada, mostra ter um lado psicológico interessantíssimo, fato inusitado ao animal. Durante vários momentos, ela me remeteu à Baleia, de Vidas Secas, o que só firma ainda mais a opinião de que ela é uma personagem essencial. Além disso, ela proporciona os momentos mais emocionantes da trama, deixando-a ainda mais envolvente. Porém, o personagem principal impressiona por sua profundidade e complexidade. O fato de não possuir um nome é uma ideia genial de Galera. A ausência de uma denominação faz com que o leitor se coloque no lugar do personagem, sentindo seus sofrimentos e angústias.
Os relacionamentos amorosos, que permeiam toda a obra, são uma pitada a mais para a excelência literária que o livro demonstra buscar. Pela primeira vez em um livro, torci de forma incontrolável pelo sucesso de um romance. Galera o traça de forma tão complexa, que faz com que os leitores tenham esse espírito amoroso trazido à tona.
Porém, o que me encantou de verdade na obra é a deficiência neurológica do personagem principal. Tal defeito faz com que ele não reconheça os rostos das pessoas. Isso faz com que as descrições de Galera de todos os personagens sejam intensas, criando uma percepção de que você está dentro da mente do professor, tentando, a todo o custo, fixar a imagem do rosto da pessoa que está na sua frente. Porém, o mais interessante é o desespero que sentia nos momentos em que ele não reconhecia a pessoa que estava falando. Tentava ficar adivinhando se era ou não alguém pertinente à obra, fato que, normalmente, seria descoberto apenas posteriormente.
“Se eu passasse a noite aqui tu não reconhecerias o meu rosto de manhã? Sinceramente? Não. Tu é a única pessoa do mundo com uma boa desculpa pra isso. Ela deixa a lata vazia no peitoril e se vira pra ele. Mas será que não ia reconhecer mesmo? Nunca aconteceu. Nem se fosse uma noite muito, muito boa? Não vou te dar falsas esperanças, Dália. O que seria da gente sem falsas esperanças?”
Enfim, o livro é formidável. Personagens, histórias, traços psicológicos. Tudo se encaixa de forma perfeita, transformando-o numa experiência intensa e única. A aparente história principal de buscar informações sobre o avô se dilui em meio a tantas outras histórias brilhantes. Porém, isso não tira a excelência de Daniel Galera com esse seu quarto romance, que possui até projeto para se tornar um filme futuramente. Barba Ensopada de Sangue se revelou como um dos melhores livros de 2012 e Galera se firmou como um dos grandes nomes da Literatura Nacional.
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