"Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre e tem direito a certas intimidades”
Se existe uma obra que me acompanhou durante toda a vida foi Auto da Compadecida. Quando criança, tive contato com o texto teatral adaptado e cheguei até mesmo a encarnar o papel do Padre João em uma peça escolar. No início da adolescência, o filme chegou às minhas mãos e me maravilhei com a obra cinematográfica de Guel Arraes. Mais recentemente, consegui, finalmente, ler o livro, que é a peça teatral na íntegra. Assim, a obra completa entrou na minha vida para nunca mais sair.
Auto da Compadecida é dividida em três atos: o primeiro narra os mal entendidos e confusões que João Grilo e Chicó acabam se envolvendo após se verem obrigados a pedir ao padre que benza a falecida cachorra de seus patrões. No segundo, encontramos algumas histórias fantásticas, inspiradas na literatura de cordel. A terceira e última é, a meu ver, a mais interessante. Ao estilo de Auto da Barca do Inferno, há o julgamento de alguns dos moradores da cidade, mortos pelo cangaceiro Severino. É muito reflexivo e até mesmo engraçado, em alguns momentos, assistir a defesa dos personagens para terem o ingresso ao céu aceito.
A primeira qualidade da obra a saltar aos olhos é a alegorização dos personagens. Todos possuem alguma alegoria e, logo, uma crítica social e religiosa embutida. É o padre preocupado apenas com dinheiro; o coronel dono de todas as terras; a mulher infiel e que dedica todo seu amor aos animais. É fantástico. Suassuna conseguiu reunir, em uma só peça, vários dos problemas brasileiros e que, quase 60 anos depois, continua atual. É a religião corrupta, o coronel nordestino que se intitula dono da cidade. O mais interessante, porém, é que, mesmo sabendo o quão graves são os problemas, é impossível não rir com a forma que a situação é posta. Ao decorrer de todo livro, via-me dando sonoras gargalhadas com os acontecimentos que se sucediam.
Além da crítica social, Suassuna consegue fazer do Auto da Compadecida um texto popularíssimo. Através do uso de referências ao cordel, como no segundo ato, e às mais diversas tradições nordestinas, a peça acaba se aproximando ainda mais do leitor popular. Inclusive daquele que sofre com alguma das mazelas alegorizadas. Não é à toa que Sábato Magaldi, influente crítico teatral, considera Auto da Compadecida “o texto mais popular do moderno teatro brasileiro”.
Não se pode deixar de falar sobre os diálogos. Por ser uma peça teatral, eles acabam tendo uma força muito mais intensa do que se fosse um texto normal. Através do direcionamento do narrador, o Palhaço, as falas acabam se tornando um espetáculo a parte e enfatizam ainda mais a sátira promovida por Suassuna.
Enfim, Auto da Compadecida é uma obra indispensável da literatura nacional. Ainda extremamente atual, ele serve para uma reflexão dos problemas que ainda persistem na sociedade brasileira e, claro, dar várias gargalhadas com as situações postas pelo gênio que era Ariano Suassuna.
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