Na última semana, o legado do astro Michael Jackson, morto em 2009, entrou em xeque. Antigas acusações de pedofilia voltaram aos holofotes por conta do documentário Leaving Neverland, da HBO, que fala com dois homens que foram supostamente abusados pelo cantor e compositor quando eram crianças. São relatos fortes, detalhados, e que tomam quase a totalidade das quatro horas de projeção do tal filme. Difícil de assistir, duro de entender. É uma produção que mexe com as emoções.
No entanto, há alguns pontos a serem considerados e é sobre isso que trata este texto. O documentário, bem produzido e muito bem fotografado, é uníssono. Mesmo tendo 240 minutos de duração, o filme se limita a falar apenas com os rapazes e a ouvir seus relatos. São menos de dez entrevistas, todas de familiares, que contam momentos vividos com o responsável por clássicos como Thriller e Billie Jean. Não há documentos, não há um trabalho do diretor. É um filme preguiçoso, que usa de um único artifício.
Isso, claro, não põe em dúvida os relatos dos dois homens, nem a ética do documentário. Afinal, sobre o primeiro ponto, fica a cargo do espectador pesar provas e relatos para, enfim, entender o que faz mais sentido para si. Dificilmente um novo julgamento será feito. Quase impossível que a inocência de Michael Jackson seja revertida. Já foi, ele está morto, o tempo passou. Mas a dor dos rapazes está aí, pronta para ser ouvida e compreendida. O juiz agora, porém, é o coração de cada pessoa.
Além disso, não pode ser dito que Leaving Neverland é eticamente irresponsável. Documentários, por mais que tenham um peso jornalístico por vezes, não são matérias, reportagens. São objetos artísticos, são filmes, e por isso devem ser tratados como olhares artísticos dos realizadores sobre assuntos do cotidiano. "O documentarista não precisa camuflar a sua própria subjetividade ao narrar um fato. Ele pode opinar, tomar partido, se expor, deixando claro para o espectador qual o ponto de vista que defende", disse Cristina de Melo, Isaltina Gomes e Wilma Morais num estudo sobre o gênero.
Ou seja: o que o diretor Dan Reed fez, aqui, não é reprimível eticamente. Pelo contrário. Documentários são produzidos aos montes com viés, mesmo que camuflado. Ano passado, o cinema brasileiro teve a honra de exibir o filme Ser Tão Velho Cerrado. E o documentário, por vezes, parece que vai seguir por um caminho de isenção, falando com agricultores e grandes fazendeiros que estão devastando a região do Cerrado. Mas, com artifícios de edição, o diretor conseguiu deixar esses entrevistados numa posição constrangedora e reafirmou, novamente, qual é seu posicionamento sobre esse tema.
É claro que Reed não queria dar atenção para a defesa de Michael Jackson. Durante os últimos anos, a única voz que foi ouvida, realmente, foi a do astro pop e dos herdeiros de seu espólio. Quase nunca houve espaço para as vítimas. Pra que colocar em dúvida, novamente, o relato dessas duas pessoas? Pra que causar mais constrangimento? A opinião da família Jackson é conhecida, é ampla e difundida. Não tem motivo pra mais.
No entanto, e aí voltamos para a discussão central desse texto, há um outro ponto a ser considerado. Tudo bem, o filme não tem problemas éticos, é bem feito, tem relatos fortes, contundentes. Mas até que ponto ele é totalmente relevante, além do fato de ter dado luz aos relatos? Como já foi citado aqui neste texto, Reed não se preocupa em ir além, em checar determinados fatos -- e não para desarticular ou desmontar o que as duas vítimas estão falando, mas apenas para deixar o filme mais sustentável, forte.
O fato é que, por não ter trazido questionamentos ou documentos importantes à baila, o documentário permite que fãs e outras pessoas interessadas em desmoralizar o filme atuem rapidamente como advogados. Um fã-clube do astro, por exemplo, já percebeu uma falha no discurso de uma das vítimas. Ela diz que foi abusada dentro do rancho de Michael Jackson, o tal Neverland, dentro de uma estação de trem que havia lá. Isso teria sido entre 1989 e 1992. Mas, checando documentos, parece que a tal estação foi construída apenas em 1993. Sem dúvidas, há explicação. Mas cadê o papel de direção?
Há outros pontos do filme que sugerem uma discussão maior, mas o diretor não vai fundo. Parece que tem medo de machucar as duas vítimas, que já estão fazendo algo difícil ao trazer tristes memórias à tona. No entanto, a partir do momento que elas toparam falar, é preciso ir além. Fazer bom uso do material que existe. Nesse estado que está, é muito fácil desmontar os argumentos, criar ou encontrar falhas, provocar os dois rapazes. É isso que causa desconforto. Reed tinha um excelente material em mãos, que poderia expandir e fortalecer. Mas resolveu soltá-lo do jeito que estava.
Isso, sem dúvidas, é moralmente questionável. Mais do que colocar seu filme em xeque, o cineasta, dessa maneira, permite que a narrativa dos dois rapazes seja colocada em dúvida de maneira muito mais agressiva. Pessoas vão se movimentar para desmontar o que eles dizem. E isso já está acontecendo. Em uma rápida busca no Twitter, é possível ver sites e perfis propagando fake news para dizer como a produção tem interesse só em dinheiro. Um site chega a dizer que o diretor admitiu, em entrevista, que fez esse filme para arrancar dinheiro dos herdeiros de Jackson. Nada disso aconteceu, claro.
O cineasta teria sido muito mais esperto se tivesse usado da técnica de Ser Tão Velho Cerrado, já citada. Falar com pessoas que defendem Jackson e, a partir da sagacidade de roteiro e edição, confrontar opiniões, relatos. Isso criaria um outro movimento que poderia proteger os rapazes. Ou, ainda, indo mais longe, Leaving Neverland deveria ter ido além. Pego documentos, encontrado detalhes da investigação conduzida pelo FBI em 2006 sobre os abusos. Faltou esse trabalho de construção e pesquisa, que ajudaria a proteger os dois entrevistados. Eles, aqui, ficam muito à mercê, muito expostos à tudo.
Assim, respondendo à pergunta do título, pode-se dizer que Leaving Neverland é um documentário deveras relevante, já que traz um discurso que é pouco divulgado -- já que, nessa guerra de narrativas, quem ganhou foi o astro pop milionário. Nem tem problemas éticos, já que segue os preceitos instituídos por seus pares. Mas moralmente, é muito fraco, questionável. Aqui, é possível questionar a relevância. Aqui, defensores de Michael conseguirão encontrar o Calcanhar de Aquiles do filme para reduzi-lo ao máximo. E será que valeu a pena isso? Tanta dor exposta para que um fã-clube qualquer possa encontrar buracos, brechas, desencontros? O diretor deveria proteger sua cria.
É preciso, sempre, refletir sobre os significados de um filme, de suas consequências. Leaving Neverland, sem dúvidas, traz alguns aspectos importantes e relevantes. Mas se coloca em risco ao não ir além. Documentos, mais entrevistas, mais imagens. Tudo isso ajudaria a blindar o filme, que acaba sendo diminuído por uma preguiça de produção. É certo isso? Esta é uma pergunta que, assim como a inocência de cada um, deve ser respondida por cada pessoa, por cada coração. Mas é difícil de entender.
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