Nascida no subúrbio carioca do Meier, em 1935, de origem humilde, a cantora e compositora Alaíde Costa sempre pautou sua carreira artística no que acreditava fazer parte da sua trajetória, no que acreditava cantar, deixando de lado os modismos e gêneros musicais que as gravadoras queriam que ela cantasse. Sem abrir concessões, Alaíde teve que atravessar muitos momentos de ostracismo, passando anos sem gravar e sem aparecer na mídia tradicional.
“Nunca fui de fazer concessões, de uma maneira geral, não sou de fazer concessões. E essa coisa aí, de ficar muito tempo sem gravar, por exemplo, foi por conta dos novos movimentos que surgiram [movimentos musicais], que queriam que eu participasse, mas eu sabia que não era para mim. Então, ficou difícil diante das minhas negativas”, diz a cantora e compositora em entrevista exclusiva por telefone para o Esquina (veja os principais trechos da entrevista abaixo).
Alaíde fará show na sexta, 8, no Sesc Pinheiros, para o lançamento de O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim, do disco homônimo idealizado pelos produtores Emicida, Pupillo e Marcus Preto e com participações de artistas de várias gerações, como João Bosco, Joyce Moreno, Emicida, Ivan Lins, Guilherme Arantes, Fátima Guedes. Além, claro, das canções que fazem parte da sua carreira de cantora, considerada uma “Estilista da MPB”, com sua voz afinadíssima e suave, como Me Deixa em Paz, que ela gravou juntamente com Milton Nascimento para o álbum, hoje antológico, Clube da Esquina, em 1972, Quem Sou Eu, do amigo e cantor Johnny Alf, entre outras.
Foi por conta de uma live que a cantora fez em 13 de agosto de 2020, durante a pandemia de Covid-19, a primeira da carreira, cantando sucessos do amigo Johnny Alf (1929-2010), que alguns produtores, como Pupillo e Marcus Preto, e o cantor e produtor Emicida, maravilhados pela apresentação da artista, tiveram a ideia de fazer um disco de inéditas para homenageá-la. Eles receberam tantas músicas, de cantores e compositores de várias gerações, que terão material para mais dois discos, além do que foi lançado em maio O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim, verso tirado da música Aurorear, de Joyce Moreno, com letra de Emicida.
Das oito canções, apenas uma não é inédita, Aos Meus Pés, de João Bosco e letra do seu filho Francisco Bosco, de 2016. Mas assim que viu a letra da música, Alaíde Costa nem quis saber do ineditismo das canções que iam entrar no disco O Que Meus Calos Dizem de Mim. “Essa música sou eu”, disse ela aos produtores. E não é para menos, a letra fala e cala tão forte na trajetória dessa cantora negra, mulher, mãe, esposa e artista singular, que se assemelha ao que sentiu a cantora Edith Piaf quando lhe apresentaram a música Non, Je Ne Regrette Rien.
“O meu caminho eu mesma fiz/Não foi ninguém que me apontou/Eu me virei sozinha/Comi o pão todinho que o diabo amassou/Eu não faço fiado/Mas dou sempre tudo por amor….”
No show, a cantora será acompanhada por um trio de base e um quarteto de metais, levando ao show o mesmo clima sofisticado do álbum. A banda base tem Fábio Sá (baixo acústico), Conrado Góes (violão) e Vitor Cabral (bateria). O quarteto de metais é formado pelo Maestro Tiquinho (trombone), Marcelo Pereira (saxofone), Dô Carvalho (saxofone) e Cláudio Camé (trompete).
Veja abaixo, os principais trechos da entrevista exclusiva por telefone para o Esquina da Cultura:
Esquina da Cultura: Quero começar pontuando três momentos da sua carreira; o primeiro, quando você participa do início do que viria a ser a Bossa Nova, nas reuniões com os integrantes do maior fenômeno musical brasileira. Mas quando a Bossa Nova explode e começa a fazer sucesso, você não é convidada para fazer parte dela. Em outro momento, é o convite que o cantor e compositor Milton Nascimento lhe faz, para gravar com ele uma música, Me Deixa em Paz, para o disco Clube da Esquina, em 1972, sendo a única mulher a fazer parte do hoje considerado o maior disco da música brasileira. Naquela ocasião, já fazia uns seis, sete, anos que você não gravava. E agora, lançado disco novo O que meus calos dizem sobre mim, depois de ser redescoberta por jovens artistas e produtores musicais por conta da live que fez durante a pandemia de Covid-19, em agosto de 2020, numa apresentação em homenagem ao seu amigo, o cantor Johnny Alf. Tendo passado por tantas fases ruins na carreira, com dificuldade de gravar e continuar exercendo sua profissão de cantora, vivendo à margem da indústria fonográfica e da mídia tradicional, como enxerga tudo isso?
Alaíde Costa: Eu nunca fui de fazer concessões, de uma maneira geral, não sou de fazer concessões. E essa coisa aí, de ficar muito tempo sem gravar, por exemplo, foi por conta dos novos movimentos que surgiram [movimentos musicais], que queriam que eu participasse, mas eu sabia que não era para mim. Então, ficou difícil diante das minhas negativas. Em relação ao convite de Milton [Nascimento], aliás, ele nem conhecia a música [Me Deixa em Paz, de autoria de Monsueto Menezes e Airton Amorim]. Essa música foi feita para ser cantando como carnaval, mas eu não via alegria nenhuma para ser música de carnaval. Então, eu fiz uma adaptação para eu cantar, pois gostava muito da música.
Esquina: Quem deu a ideia ao Milton Nascimento para você gravar essa música no disco Clube da Esquina?
Alaíde: Foi o Milton. Ele não conhecia a música. Eu fui num programa de televisão, Almoço com as Estrelas [programa que começou na TV Tupi em julho de 1956, depois passou a ser transmitida pela Record, até o término dele no SBT em setembro de 1983] , que ele estava participando. Ele se apresentou antes de mim, e daí o Airton Amorim [um dos autores da música], que pediu para Milton não sair, que ele ia chamar uma pessoa, que iria gostar. Airton me chamou e eu cantei Me Deixa em Paz, que Milton não conhecia. Ele até tentou me acompanhar, mas eu já tinha ensaiado com o grupo que me acompanhou na apresentação. Quando terminei minha apresentação, ele me falou que estava gravando um LP [Long Play] e que gostaria que eu participasse. Eu falei: “Claro”. Daí o tempo passou, passou, e nada de Milton me chamar. Até pensei que ele tinha esquecido do convite. Até que um dia me ligaram da Odeon [gravadora], que era para ir gravar com Milton. Quando cheguei lá, já tinha o arranjo pronto, do Wagner Tiso. Aí aconteceu essa gravação de Me Deixa em Paz para o disco Clube da Esquina.
Esquina: O que você achou da gravação da música para o disco?
Alaíde: Acho que essa nossa gravação do Me Deixa em Paz deu um grande impulso para o Clube da Esquina.
Esquina: Ter participado do disco Clube da Esquina ajudou de alguma forma sua carreira, já que você estava sem gravar um bom tempo. Essa visibilidade te ajudou?
Alaíde: Ajudou com certeza. A música começou a tocar nas rádios e a fazer sucesso. Aí a gravadora Odeon resolveu me contratar. Comecei lá, gravando um compacto duplo com produção do Milton [Nascimento]. Depois gravei um LP, e depois outro disco com produção do Milton que se chama Coração.
Esquina: Voltando a Bossa Nova, que vai estourar no início dos anos 1960, por que eles não te convidaram para participar, já que você estava presente na gênese do movimento, e já era uma cantora com discos gravados, já tendo iniciado uma carreira?
Alaíde: Eu suponho, que na época eu não percebia, que aquilo era um movimento de brancos. De fato, já era uma cantora profissional e poderia ter interpretando algumas canções, já que estava sendo aceita, até que a Bossa Nova começa a fazer sucesso. Vejo nesse episódio um preconceito racial velado. Dentro da minha ingenuidade eu não percebia isso.
Esquina: Em entrevistas, você diz que essa ingenuidade não era somente da sua parte, também atribuía ao cantor Johnny Alf, que participou do movimento da Bossa Nova…]
Alaíde: Com certeza. E foi o Johnny [Alf] que começou tudo isso. Já em 1952, ele fazia essas músicas super elaboradas. Contam, mas eu não participei disso, que os meninos da Bossa Nova eram todos meninos ainda. Os meninos da Bossa Nova iam escondidos participar das reuniões e ver Johnny Alf nas apresentações. Johnny Alf foi uma artista muito importante para o movimento da Bossa Nova, mas que também não teve o reconhecimento.
Esquina: Ter chegado aos 86 anos, com uma carreira de quase 60 anos, com tudo que você passou, com mais dissabores que êxitos e alegrias. Qual a sua concepção desses holofotes, do disco novo, do pessoal jovem da música descobrindo você, etc. Você diz que o reconhecimento veio tarde, mas ainda bem que veio, o que tem a dizer a respeito?
Alaíde: Tem o ditado popular que diz que “Deus tarda, mas não falha”. Pois é, num espaço de dois anos, três, eu fiz dois discos, três aliás, já que um já estava pronto, de uma gravação que tinha feito na rádio Eldorado, em 1972, que o Thiago Marques Luiz descobriu. O Thiago me propôs fazer um disco dessa gravação, e assim foi feito, que se chama Antes e Depois [CD das duas sessões de gravação, de setembro de 1972 e meados de 1974, resgatadas produtor Thiago Marques Luiz e pelo selo Discobertas], que foi lançado em 2021. Já tinha gravado um disco com José Miguel Wisnik que se chama O Anel, Agora, em 2022, lancei o disco Canções de Amores Paulistas, interpretando músicas de Eduardo Santhana. Nos últimos três anos, quatro discos, já que tem agora O Que Meus cClos Dizem Sobre Mim, o meu disco de músicas inéditas [com exceção da música Aos Meus Pés, de João Bosco e letra do seu filho Francisco Bosco, de 2016, mas que Alaíde achou a música sua cara “Essa música sou eu”], lançado em maio deste ano.
Serviço Alaíde Costa
Dia 8 de julho de 2022. Sexta, às 21h
Ingressos: R$ 40 (inteira), R$ 20 (meia), R$ 12 (credencial plena)
Local: Teatro Paulo Autran
Duração: 90 minutos
Classificação: 10 anos
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