Uma coisa é certa: temos que comemorar e divulgar os eventos culturais que estão acontecendo em 2019. É o primeiro ano de um governo acéfalo e contrário à civilidade que elegeu a Cultura e a Educação como alvos de seus ataques, armado de ideologia tosca e miopia intelectual. Diante disso, um dos setores mais atacados com a diminuição de patrocínios e verbas é o audiovisual, especialmente o cinema. Não só na produção de filmes, mas também no fomento de divulgação das produções de mostras.
Por exemplo: um dos eventos mais tradicionais e importantes do País, o Festival do Rio, corre o risco de não ser realizado diante da saída de patrocínio da Petrobrás, maior financiadora do evento. O Anima Mundi, enquanto isso, recorreu ao financiamento coletivo para realizar o seu tradicional festival de animação, um dos maiores do mundo.
É nesse cenário preocupante e sem horizonte que ocorre a 8ª Mostra Ecofalante de Cinema, festival que trata de assuntos socioambientais por meio da sétima arte. O evento, que começou no dia 30 de maio e vai até dia 12 de junho, acontece em mais de 40 pontos de exibição espalhados pela cidade, entre salas de cinema, CEUs, centros culturas e Fábrica de Cultura. Um dos responsáveis por tocar o evento, mesmo num ambiente tão adverso, é Chico Guariba, um dos fundadores e curadores da Ecofalante.
O que ele e sua equipe fizeram, num ano de "vacas esqueléticas" para toda a área da Cultura, é algo para se louvar e comemorar. Afinal, eles vão realizar uma edição ainda maior da Ecofalante quando comparada com todos os seus anos anteriores.
Como se explica o milagre? "Realmente, a situação atual está calamitosa, muito difícil. Este ano, a gente está viabilizando a Mostra graças a um apoio, principalmente, de vereadores da cidade de São Paulo. Depois das eleições [que elegeram Jair Bolsonaro], eu falei: 'a situação vai ficar muito feia!'. A gente tinha apoio de alguns vereadores no ano passado. Passei a frequentar a Câmara Municipal para arrumar apoio de outros vereadores”, revelou ele na entrevista ao Esquina (veja a conversa completa abaixo).
Serão 132 filmes, entre mostras competitivas e paralelas, com destaque para a Pós-68, que trará filmes de cineastas que se debruçaram a explicar o fim das utopias que aconteceram em 1968. Serão longas de cineastas como Michelangelo Antonioni, Agnès Varda, Glauber Rocha. E da Mostra Brasil, com filmes recentes sobre temas como clima, água, energias renováveis, com produções de Orlando Sena (A Idade da Água) e Christiane Torloni e Miguel Przewowowskin (Amazônia, o Despertar da Florestania).
E isso sem falar do Panorama Internacional Contemporâneo, com filmes que se debruçam sobre assuntos de extrema atualidade, como o domínio das máquinas no cotidiano de todos nós, em A Verdade Sobre Robôs Assassinos; e Frente Atômica, que mostra a luta de uma comunidade nos EUA contra a negligência governamental.
Como mesmo revelou Guariba, a Ecofalante é o segundo maior festival de cinema de São Paulo, perdendo só para Mostra Internacional, que acontece em outubro. São 44 espaços que exibirão os 132 filmes, todos com entrada gratuita ao público, além de debates e uma homenagem ao diretor e produtor Silvio Tendler, com terá parte de sua obra exibida durante o festival, entra elas Os Anos JK – Uma Trajetória Política e Jango.
Esquina da Cultura: Quais são os desafios de realizar uma mostra de cinema temática, que trata de assuntos socioambientais sem cair no didatismo e em produções panfletárias?
Chico Guariba: A grande característica, o segredo da Ecofalante, é a curadoria. Somos uma equipe de oito curadores que trabalha seis meses por ano, selecionando os filmes. Pesquisamos as produções em 60 festivais do mundo, catalogando por volta de 1500, longas em sua maioria, que assistimos, para escolher entre 45 a 50 obras que consideramos os melhores em termos de linguagem cinematográfica. Não selecionamos obras panfletárias ou didáticas, o filme tem que ser bom, tem que ser cinema. Além disso, na competição Latino-Americana, temos inscrições, e também convidamos filmes para fazerem parte. Por exemplo, este ano selecionamos 24 longas para esta mostra competitiva. Como falei no início da conversa, o grande segredo, o nosso DNA, é a curadoria. Pensamos os filmes pelo apuro de linguagem e que deem debates e reflexões para a sociedade.
Esquina: Muitos dos festivais e mostras de cinema no País estão vivendo os seus piores momentos no Governo de Jair Bolsonaro. Como viabilizaram esta edição, que pelo volume de filmes, homenagem e eventos paralelos, não parece que sofreu cortes?
Chico: Nunca foi uma tarefa fácil. Começamos bem pequenininhos, só com patrocínios privados. Nós nunca tivemos apoio de empresa estatal. Realmente, a situação atual está calamitosa, muito difícil. Este ano, a gente está viabilizando a mostra graças a um apoio, principalmente de vereadores da cidade de São Paulo. Depois das eleições [que elegeram Jair Bolsonaro], eu falei: “A situação vai ficar muito feia!”. A gente tinha apoio de alguns vereadores no ano passado. Passei a frequentar a Câmara Municipal de São Paulo para arrumar mais apoio de outros vereadores. Hoje, temos apoio de dez vereadores, que entenderam a importância do nosso trabalho. A Ecofalante é um evento de políticas públicas de qualidade. Levamos informações importantes para o público. Promovemos cultura, educação e cidadania para a população. Esta será nossa maior edição, graças ao apoio desses vereadores. Mas também de outros apoiadores, pois trabalhamos com vários apoiadores. Estamos expandindo o circuito, passando de 30 pontos de exibição, para 44, este ano, como Fábricas de Cultura, Teatros públicos, Centros Culturais, etc. Hoje, somos a segunda maior mostra de cinema de São Paulo, e o maior evento gratuito de cinema.
Esquina: A edição deste ano da Mostra Ecofalante se envereda por questões acentuadamente políticas, com exibição de filmes que tratam de temas atualíssimos, como o clima, impactos e danos no meio-ambiente, políticas públicas, e as utopias pós-68. A curadoria foi pensada por conta do governo de Jair Bolsonaro?
Chico: Nossa mostra é essencialmente política. Por sermos uma mostra socioambiental, as questões políticas estão no DNA do festival desde a primeira edição, principalmente pelas questões ambientais. Evidentemente, esse período que estamos vivendo, de inflexão política, nos inspirou a procurar em outra época, algo parecido com que estamos atravessando. Aí pensamos numa mostra que reunisse obras de grandes cineastas sobre a crise das utopias pós-68, quando os ideais de um mundo melhor ficaram suspensos. Pegamos, nesse período, obras marcantes de cineastas como Michelangelo Antonioni, Agnès Varda, Frederick Wiseman, Glauber Rocha, entre outros, que refletissem sobre esses momentos de inflexão e mudanças. É nessa época, pós-68, que nasce um cinema mais militante, engajado, que olhava para as lutas pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, para as questões femininas e dos gays, para as preocupações com o meio ambiente, etc. Foram filmes que documentaram as lutas sociais desta época. Obras que apontaram outros caminhos para o futuro.
Esquina: Vocês vão prestar homenagem ao diretor e produtor Silvio Tendler, com exibição de alguns dos seus filmes que abordam questões socioambientais e políticas. Fale um pouco sobre a importância de Silvio Tendler e de que maneira a homenagem a ele se encaixou na linha de curadoria desta edição?
Chico: Silvio Tendler é o documentarista de maior sucesso de púbico que o cinema brasileiro já teve. Acompanho-o desde à adolescência. Um cineasta com obras seminais sobre a história política brasileira, obras que combateram uma visão atrasada do país. Tendler é um cineasta político que trabalha com a resistência. Além de uma obra crítica, nos últimos anos, ele fez uma série de filmes que frequentaram nossa mostra Ecofalante por que tinha uma característica diretamente socioambiental, abordando questões econômicas e políticas que estavam interferindo em temas ambientais, como, por exemplo: O Veneno Está na Mesa I e O Veneno Está na Mesa II, entre outros. Obras analíticas e críticas que mostram outros caminhos para o desenvolvimento da sociedade. No ano passado, Tendler ganhou o prêmio do júri da mostra competitiva Latino-Americana do Ecofalante com o filme O Dedo na Ferida.
Esquina: Serão exibidos 132 filmes, de 32 países, como o filme de abertura de Florian Weigensamer e Christian Kiönes, que trata do maior lixão de material eletrônico do mundo. Comente um pouco sobre os destaques desta edição...
Chico: Além desse filme, que exibimos na abertura da Ecofalante, que você mencionou, temos os destaques da mostra pós-68, como, por exemplo: Os Tempos de Harvey Milk; O Leão de Sete Cabeças, de Glauber Rocha; A Sociedade do Espetáculo. Na homenagem ao Silvio Tendler, os dois clássicos deles: Os Anos JK – Uma Trajetória Política e Jango. Na Mostra Brasil, destaco: Amazônia, o Despertar da Florestania, de Christiane Torloni e Miguel Przewodowski (trailer acima); A Idade da Água, de Orlando Sena, e filme sobre um grande cineasta brasileiro, Humberto Mauro. No Panorama Internacional, filmes que de debruçam sobre temas de grande importância para atualidade, como Frente Atômica, sobre a luta de uma comunidade nos Estados Unidos que luta contra a negligência governamental; Jane, um retrato do trabalho de Jane Goodall que trabalha com imagens de arquivo de mais de 50 anos da revista National Geographic e A Verdade Sobre Robôs Assassinos, que aborda nossa cada vez maior dependência das máquinas. Claro, tem outros eventos, e a mostra competitiva Latino-Americana.
Esquina: Entre os apoiadores dos filmes, estão empresas estatais como o Banco do Brasil. Esse apoio teve alguma influência na curadoria, no sentido de amenizar críticas ao governo de Jair Bolsonaro?
Chico: Em relação ao apoio do Banco do Brasil, não é financeiro, ele não entrou com dinheiro, cedeu o espaço para exibirmos alguns filmes da Ecofalante. Nenhum apoiador ou patrocinador interfere na curadoria do festival. A curadoria é totalmente independente, é assim desde a primeira edição, não abrimos mão disso.