Ao vasculhar a internet, é fácil encontrar pessoas que tiveram a vida transformada pela arte, seja ela qual for. Muitos largaram seus cursos tradicionais, outros se arriscaram em outras cidade ou países. Muitos falharam, alguns tiveram sucesso. No entanto, além de mudar a vida externamente, a arte entra na vida e na essência das pessoas e, se permitir, passa as moldar em seu interior de maneira avassaladora.
No livro Grito, do catarinense Godofredo de Oliveira Neto, a premissa básica é esta: a arte, seja ela qual for, que altera a vida das pessoas. No caso deste livro, conta-se a história da ex-atriz Eugênia, uma senhora na casa dos 80 anos, solitária e que ama o teatro acima de tudo. Sua vida só ganha um novo rumo quando Fausto, seu vizinho de apartamento, entra em cena.
De apenas 19 anos, o jovem amante do teatro encontra em Eugênia sua outra metade da alma de artista. Com passado obscuro e uma dificuldade em demonstrar sentimento, ele vê em sua vizinha um porto-seguro, uma mãe que precisa ter. A partir daí, então, Godofredo mostra como a relação dos dois se desenvolve, misturando real, lirismo e teatro em uma só forma de narrativa e de experimentação.
"Misturar narrativas é uma marca de nosso tempo", afirma Godofredo, em entrevista exclusiva ao Esquina. "O teatro precisa se renovar, acompanhando as mudanças do público. Misturar narrativa tradicional com a do teatro se adequa às linhas da literatura nacional do século XXI, onde prazer e reflexão devem andar juntos."
Além disso, a mistura realizada pelo escritor gaúcho permite algo complexo na literatura, ao dar o vislumbre do leitor sobre o que as personagens estão sentido. Em cenas escritas por Eugênia, por exemplo, é possível entender que há uma tensão sexual entre ela e Fausto -- mesmo que este não perceba. "A mescla do mundo real e do imaginário é bem produzida pelo teatro, onde imitação das pessoas convive com a denegação do interdito. Os estudiosos da área falam da catarse do teatro", diz Godofredo.
Com isso, Grito se torna, além de uma grande ode ao teatro, uma história de sutilizas e pequenos momentos, que muito significam para a narrativa. E o final, surpreendente, dá mostras de como a metáfora e os símbolos representam para uma relação humana -- e como a arte, de fato, muda a vida das pessoas. Godofredo se consolida, com Grito, como uma das principais vozes da literatura nacional atual. É um autor original, ousado e sem medo de chocar.
Godofredo de Oliveira Neto é autor de outros três livros, doutor em Letras pela UFRJ e vencedor do 48º Prêmio Jabuti, em segundo lugar pela obra Menino Oculto, em 2005. É um escritor completo e com seu espaço na literatura brasileira. Por isso, o Esquina conversou com Godofredo para entender a sua inspiração para Grito, a relação com teatro e, é claro, sobre futuros projetos:
Esquina: 'Grito' é uma homenagem ao teatro. O quão próximo você é da rotina desta arte?
Godofredo de Oliveira Neto: Nos meus primeiros anos de Rio de Janeiro, no final de 1960, início de 70, ia ao teatro três vezes na semana. A gente via Brecht, Vianinha, Boal. Eram tempos politizados, às vezes peças censuradas eram levadas em espaços inesperados, como as salas de aula e até na garagem de pessoas. Grito relembra essa paixão. O teatro era uma frente de resistência, no tempo de AI-5, por meio de metáforas e analogias.
Qual o desafio de escrever 'Grito'?
O desafio foi o de imaginar como o leitor ia ler a obra. Uma novela? Uma peça teatral? Os últimos atos do livro, a partir do decimo quarto, quis que fossem vistos como a abertura dos enredos, caracterizando assim a ideia de gênero romanesco, como nas novelas de televisão. E fico contente porque houve, aparentemente, essa visão por parte dos leitores. Não há no Brasil o hábito de ler peças de teatro. Tinha que escrever de um jeito que as peças pudessem ser lidas sem que o leitor se desse conta, por serem pequenas. O pensamento homicida e perverso da personagem Eugênia é ilustrado via peças de teatro. Como conseguir fazer isso? Essa é a pergunta que me acompanhou durante toda a escrita.
De onde saiu a inspiração para as personagens do livro?
Da leitura do Fausto, do Goethe, de Thomas Mann, de Valéry. Werther li já na adolescência, mas era citação frequente dos professores no Colégio em Blumenau. Na Alemanha , dizem, teve uma série de suicídios por amor quando saiu o livro no século XVIII. Se é verdade não sei, mas que é curioso é. Quanto à Eugênia, Fausto e a diferença de idade, eu acabava de ler uma biografia da Marguerite Duras e seu muito jovem amante.
Percebi, ao longo de toda a leitura, uma tentativa de Fausto e Eugênia em tornar a vida uma peça de teatro, uma obra de arte. Esta é a saída? Tornar nossas vidas mais artísticas, mais fabulosas?
Grito não reproduz o real, não é essa sua função. O livro aborda o real obliquamente mediado pelo trabalho com a linguagem e pela forma. Quer dizer, se consegui fazer isso. Diante dessa ignomínia existencial pelos tempos que correm, com a incitação à competição asquerosa e animalesca, arte pode tornar a vida mais fabulosa, como você diz, e propor um mundo humanista e harmônico. Não é a sua função inicial, mas Grito contribui para isso. Penso que é o sonho de todo escritor.
E quais seus planos agora?
Estou escrevendo um novo romance sobre a vida de Eugênia quando ainda ativa nos palcos.