A abertura da 51ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasil atrasou quase duas horas. Mas muito em função das homenagens. A medalha Paulo Emílio Salles Gomes, neste ano, foi dada ao crítico de cinema, professor e pesquisador Ismail Xavier; e à Walter Mello, que participou da criação da Semana do Cinema Brasileiro, que resultaria na criação do Festival de Brasília em 1965. Depois, foi a vez do Prêmio Leila Diniz, criado este ano e entregue para a montadora Cristina Amaral e para a atriz Ítala Nandi.
Ítala Nandi, em seu discurso, falou da importância das artes para o País, dos seus 60 anos de carreira e de ter voltado a fazer cinema – ela protagoniza o filme Domingo, de Fellipe Barbosa e Clara Linhart (leia mais abaixo). A atriz lembrou de alguns cineastas com quem trabalhou, como Joaquim Pedro de Andrade, que a dirigiu em Guerra Conjugal, e Ruy Guerra, além do desafio de ser dirigida por uma nova geração de cineastas. “Adorei participar do filme desses jovens diretores de Domingo, que fazem cinema de outra maneira. Vocês não sabem a dificuldade que é realizar uma cena de sete, oito minutos, num plano-sequência, com vários atores ao mesmo tempo”, disse a atriz rindo para a plateia presente que lotou a ampla sala de Cine Brasília onde acontece o festival.
Passadas as homenagens, foi a vez do diretor artístico do festival, Eduardo Valente, subir no palco para apresentar o curta-metragem Imaginário, de Cristiano Burlan, que, por meio de imagens de arquivo, faz um mosaico sobre o nosso conturbado processo político a partir do fim do Estado Novo, de Getúlio Vargas, passando pelo suicídio, em 1954; pelo Golpe de 1964; e o famigerado Ato Institucional número 5 em 1968.
As imagens que Burlan usa para compor a narrativa não correspondem aos fatos que são mostrados nele – o que é projetado na tela são cenas de filmes mudos que ele conseguiu na Cinemateca da Suíça. Enquanto o espectador escuta os acontecimentos políticos por meio de programas de rádio da época, como o Repórter Esso, as imagens são de filmes documentais dos primórdios do cinema silencioso. O curta é um belo exercício da carpintaria da memória imagética do cinema. Afinal, recompõe nosso passado, mais também traz um testemunho do nosso frágil processo político, com interrupções do processo democrático, por meio de golpes, cerceamento de liberdade e manutenção dos privilégios da classe dominante.
'Domingo, 01 de janeiro de 2003'
O filme Domingo, de Fellipe Barbosa e Clara Linhart, ganhou sua primeira projeção mundial, algumas semanas atrás, numa das mostras paralelas do Festival de Veneza, e ontem à noite foi visto por uma plateia brasileira que recebeu bem a história de uma família tradicional do interior do Rio Grande do Sul. A matriarca, vivida pela atriz Ítala Nandi, visita um dos filhos na velha residência, agora decadente, da família, para juntos participarem do aniversário de 15 anos de uma neta. Os membros da família – filhos, noras e netos, além de um velho agregado e de uma empregada negra, com sua filha mestiça – vão compor o mosaico das desgastadas relações familiares e do convívio dela com os subalternos, num domingo do dia 1 de janeiro de 2003, tendo como pano de fundo a posse do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
Os diretores optaram narrar a história entre planos-sequências e cortes rápidos das histórias que vão acontecendo com essa família e os empregados nesse domingo do primeiro ano de 2003. São histórias que vão acontecendo na área externa e na sala principal da casa, mas são nos cômodos dessa residência que as feridas encobertas dessa família vão sendo reveladas. Um País visto por uma de suas famílias tradicionais e pela esperança da posse do seu primeiro presidente oriundo da classe trabalhadora.
Tanto o curta quanto o longa revelam nossas fraturas expostas, que falam da luta de classe, das complicadas e doentias relações familiares e da tentativa tão desejado e incansável de se chegar ao País do Futuro, ainda ele só possa ser visto através de imagens de filmes mudos que não estão relacionados com nossa história ou por meio do dia em que o Brasil sonhou que o caminho finalmente começava a ser trilhado.
* O repórter viajou a convite da organização do 51º Festival de Brasília.
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