Quando os créditos de O Animal Cordial sobem na tela do cinema, difícil digerir a complexidade da obra. Como todo bom horror, o longa vai além dos sustos formulaicos e arrisca em camadas mais profundas, trazendo significados maiores para o sangue, a violência e a brutalidade. Ainda assim, apesar do frescor que a produção de Gabriela Amaral Almeida traz ao cinema nacional, falta objetividade e um cuidado mais apurado no roteiro.
A história é forte: Inácio (Murilo Benício) é dono de um restaurante decrépito, mas que acredita que o local é chique e bem frequentado. Sob sua regência, estão a garçonete Sara (Luciana Paes) e o cozinheiro Djair (Irandhir Santos), que tentam driblar o cansaço imposto pelo chefe. É nesse complicado clima que o trio, junto com outros três clientes (Camila Morgado, Ernani Moraes e Jiddú Pinheiro), se tornam vítimas de um violento assalto.
Com uma mão pesada no gore, no slasher e, até mesmo, no giallo, Gabriela Amaral Almeida conduz a trama como gente grande. Ainda que este seja seu primeiro longa-metragem, fica claro como a cineasta se preparou e cuidou, com carinho, de sua produção -- não foi à toa, afinal, que o filme já está sendo preparado há 3 anos. Enquadramentos, trilha sonora e uma edição acertada ajudam a dar unidade à história.
O elenco, sob sua regência, brilha. Murilo Benício (Divórcio) entra num papel dificílimo, ficando a uma distância muito curta de se tornar caricato. É uma linha tênue, mas cumprida com eficácia pelo veterano ator da TV Globo. Luciana Paes (Sinfonia da Necrópole) também traz boa complexidade à personagem, permitindo-se ousar em cenas viscerais. Quem completa a trinca de grandes interpretações é Irandhir Santos. Que ator!
Outro ponto alto de O Animal Cordial são as diversas referências -- e críticas sociais -- que podem ser encontradas na história. Em empreitada parecida com o que Vingança e Raw fizeram recentemente, o filme de Gabriela pode ser sobre diversas coisas: reforma trabalhista, machismo, pirâmide social, a necessidade de manter as aparências. São diversas as leituras que encaixam dentro da trama e que podem criar boas experiências.
No entanto, o roteiro -- escrito pela própria Gabriela -- tem falhas. Talvez por ser muito curto, O Animal Cordial não dá tempo para que a pessoa aceite aquela realidade psicótica que está sendo apresentada. Há elementos que trabalham para isso, mas há falha na construção de personagens e de situações dentro da história -- algo que As Boas Maneiras fez muito bem. Abre margem para que o filme seja amado e detestado em iguais medidas.
Alguns personagens também são extremamente subaproveitados. Os três clientes não possuem camadas e grandes atores (Ernani Moraes, principalmente) são desperdiçados em cenas que pouco dizem.
Além disso, falta algo que Gabriela Amaral Almeida chamou a atenção na coletiva de imprensa sobre o filme: identidade nacional. Ainda que Rodrigo Teixeira negue, há uma proximidade muito grande com o capítulo da cozinheira de Relatos Selvagens. Há, também, exagero de recriações de coisas que já foram feitas por Hitchcock, Polanski e por aí vai. Parece que falta algo que faça com que O Animal Cordial seja genuinamente brasileiro.
Afinal, tudo bem usar as criações de outros como farol. Coloque-as no horizonte e, depois, crie. O problema é quando fica dando voltas ao redor desse farol, sem nunca se afastar. É um problema estrutural do cinema nacional de gênero. E que ainda não foi resolvido.
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