Outro dia, conversei com a cineasta Gabriela Amaral Almeida em razão do lançamento de seu filme, A Sombra do Pai. Ela disse que fantasia e terror serve para falar de questões que, em tempos sombrios, são caladas, deixadas de lado. "As alegorias ajudam a formular as perguntas sobre o período", afirmou. E olha como é o destino: outro lançamento, desta vez de um realismo fantástico visceral, comprova a tese de Gabriela. É o forte, original e impactante Mormaço, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 9.
O longa-metragem acompanha a história de Ana (Marina Provenzzano), uma jovem advogada que vê o Rio de Janeiro em transformação. De um lado, uma empreitar quer comprar seu apartamento para, no lugar, construir um hotel. A ideia é embarcar no ânimo das Olimpíadas. Ao mesmo tempo, mas num contraste de tratamento chocante, uma comunidade próxima sofre ameaças frequentes de desapropriação por parte do próprio governo. O foco, também, está nas Olimpíadas. É um tipo de higienização dali.
A partir disso, a diretora Marina Meliande (A Fuga da Mulher Gorila) tece uma trama ancorada no realismo fantástico para falar sobre essa especulação imobiliária predatória e como isso afeta a vida dos envolvidos. Dialogando fortemente com Aquarius, o longa-metragem se vale de uma metáfora sobre uma doença de pele -- e que se revela muito mais do que isso -- para trazer temas importantes à baila, como pertencimento, resistência, lugar de fala e, principalmente, voracidade imobiliária.
Nada disso seria possível, também, se não fossem dois fatores: a atuação de Provenzzano (Legalize Já!) e a humildade da diretora em tratar o tema, sem se desfazer da inteligência do público. Sobre o primeiro ponto, há de se destacar que a atriz carrega o filme nas costas em termos de atuação. Ainda que haja uma ponta aqui e outra acolá, o filme é dela. A atuação conversa com a narrativa e, com isso, faz com que o espectador mergulhe na trama. A resistência da personagem se mistura com cansaço.
Além disso, ao contrário de seus outros filmes, Marina Meliande não trata o tema com certa pretensão. Há humildade ao falar da história das famílias despejadas, da especulação imobiliária. Claro: a opinião da cineasta sobre o tema é forte. Ela faz política com a história. Mas também deixa que Mormaço flua ao longo de seus mais de 90 minutos. E como flui bem! Ainda que haja uma lentidão exagerada em alguns pontos, a trama avança com cautela. Não é à toa que tem resultado muito positivo ao final.
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