Foi em 2013 que o tal "gigante" acordou e o Brasil começou a ir para as ruas. As exigências, em determinado momento, se tornaram esparsas e diversas, mas o foco era a manutenção dos R$ 3 de valor da passagem de ônibus e metrô. Deu certo, mas o gigante não adormeceu: em 2014, o alvo se tornou a corrupção com a Copa do Mundo; em 2015 e 2016, os protestos pelo fechamento de escolas; e em 2016 e 2017, é claro, o impeachment de Dilma Rousseff e os desmandos do novo governo de Michel Temer.
Como linha unificadora entre tantos protestos está a polícia. Sejam elas pacíficos ou com moderada violência, as manifestação sempre registraram algum tipo de reação mais agressiva por parte da polícia ou, ainda, de abuso de autoridade. E são sobre esses acontecimentos que o documentário Marcha Cega se debruça. Dirigido por Gabriel Di Giacomo (Comédia MTV), o longa-metragem se passa como uma linha temporal sobre os crimes cometidos pela polícia durante esses quatro períodos, em diferentes grupos.
Como a maioria dos documentários, o tom é partidário desde o começo e não há medo em mostrar que o filme é contra o sistema atual da Polícia Militar e Civil. Os depoimentos colhidos, fortes e contundentes, exponenciam isso com relatos de agressões ou injustiças cometidas por um sistema que aparenta estar cada vez mais corrompido. Nisso, chama a atenção a diversidade de entrevistados: não apenas jovens ativistas, como também um tenente reserva da Polícia e um ex-secretário de segurança. Todos, de forma mais moderada ou direta, a favor da desmilitarização das polícias.
E a partir desse material, Gabriel Di Giacomo é muito feliz na construção geral do longa-metragem. Com alguns toques experimentais, como a edição que deixa uma rápida tela preta no meio de alguns depoimentos, o documentário tece sua narrativa de forma elegante, mas sem deixar de ser incisiva. É curioso, por exemplo, a forma como alguns dos abusos são mostrados, colando imagens gravadas contra o próprio código da Polícia na tela. Recurso inteligente e que deixa tudo mais impactante para a audiência.
O que falha no filme, e o deixa bem menos interessante, é a parte final. Ainda que a história dos 18 presos políticos seja forte e muito necessária para ser discutida, ela não é posta na tela de modo dinâmico. Repete um pouco as fórmulas dos protestos anteriores e, assim, acaba deixando Marcha Cega com a sensação de que é mais longo do que é de fato. História final interessante, mas modo de contar repetitivo. Difícil não se cansar.
É possível dizer, também, que falta, pelo menos, uma voz destoante no meio de tantas entrevistas reprimindo as barbáries da Polícia Militar -- e que são indefensáveis, de fato. No final, Giacomo deixa claro que tentou falar com o comando da PM e com a secretaria de segurança do Estado, mas não obteve sucesso. Ainda assim, poderia ter o depoimento de um ou outro estudioso do meio que não defenda a desmilitarização, mas outras medidas. Ou, ainda, alguém que problematize também o vandalismo do protesto. Isso ajudaria a dar dinamicidade na narrativa e os argumentos poderiam ser facilmente trucados na edição -- como fez o brilhante documentário Ser Tão Velho Cerrado.
Ainda assim, Marcha Cega é um filme urgente, necessário e difícil de digerir. A brutalidade policial na tela, assim como no recente Auto de Resistência, choca e faz refletir sobre o sistema que existe hoje. A Polícia deve seguir um modelo tão ultrapassado? Deve continuar tirando as chances dos próprios policiais em subir na carreira? A Polícia deve continuar sendo um mecanismo de combate aos protestos?
Sem dúvidas, quando uma obra audiovisual traz tantos questionamentos, só há uma recomendação: vá ver e reflita. Ouça, veja, tire suas conclusões. Vale a pena.
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