O Brasil está dividido. Você pode estar de um lado ou outro da equação, ou até mesmo no centro. Mas, mesmo assim, há uma força polarizante que puxa a população para lados opostos da política. Ninguém está exatamente certo ou errado. É apenas um fato e o País, enquanto isso, vai agonizando sem conseguir avançar para a frente. Bacurau, novo filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, fala justamente sobre o sentimento que some com tamanha divisão: a noção de uma unidade total e nacional.
O longa-metragem acompanha a rotina da pequena cidade homônima ao título. Ficcional, ela fica no interior do Nordeste e é praticamente constituída por uma única rua. Todo mundo se conhece, todo mundo é amigo. Tem a médica Domingas (Sônia Braga), o ex-matador Pacote (Thomas Aquino), a prestativa Teresa (Barbara Colen), enfim. Uma série de pessoas que se misturam e acabam por formar a constituição dessa pequena cidade que parece vir e ir para lugar algum. Eles são a cidade.
As coisas são abaladas, porém, quando um grupo de estrangeiros comandado por Michael (Udo Kier) chega no local. Primeiro aparecem dois forasteiros brasileiros (Karine Teles e Antonio Saboia) montados em motos de trilha. Depois, o grupo principal surge.
A partir disso, KMF (Aquarius e O Som Ao Redor) e Dornelles (O Ateliê da Rua do Brum) tecem uma trama que não cansa de surpreender. Bem construído, Bacurau parece uma mistura brasileira de Tarantino com Lars Von Trier. Tem a violência de um, o choque de outro. Mas, ainda, traz em seu roteiro o tempero do atual momento brasileiro. E mostra como o País pode reagir à essa falta de identidade e coesão nacional que parece corroer todos os espectros de uma vida em sociedade no Brasil. É sobre isso e muito mais.
Primeiramente, o longa-metragem constrói, com calma e paciência, o que é Bacurau. Não só a cidade em si, mas como os personagens se relacionam, enfrentam as adversidades. Há um tom distópico, assumido logo no primeiro minuto quando o filme se referencia "daqui muitos anos". Mas não há nada muito fora da realidade. Pelo contrário: a vida vista em Bacurau, de maneira assustadora, consegue ser mais real do que muitos documentários por aí. E olha que o filme foi rodado há cerca de um ano.
Depois, KMF e Dornelles constroem a dicotomia entre estrangeiro e brasileiro, entre nacional e anti-nacional. Está na primeira cena (efeito visual americano x música brasileira), na trilha sonora (música em inglês x Gal Costa), nos veículos de cada um dos grupos (bicicleta x drone). É uma maneira esperta que a dupla de diretores adotou. Usou e abusou de símbolos para, ao final, criar o sentimento de que algo está entrando em embate. Por mais que esse embate fique claro só no último ato do longa-metragem.
As atuações ajudam a intensificar esse sentimento e, também, a fazer com que a audiência compreenda a pluralidade de Bacurau como uma coisa só. Sônia Braga tem bem menos espaço do que em Aquarius, mas consegue brilhar. Faz uma personagem dura, resistente e que deixa sua personalidade transparecer aos poucos. Dá até pra abocanhar indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Thomas Aquino (3%) é a grande surpresa. Ator completo, aumenta a dramaticidade do filme como um todo.
Destaque, também, para Silvero Pereira (Serra Pelada) como um excêntrico criminoso da região; Udo Kier (Melancolia) como o líder dos americanos; Karine Teles (Benzinho) em rápida participação como forasteira; e Brian Townes (Marighella), outro americano.
O grande momento do filme, porém, é quando o final junta todos esses sentimentos em um só momento. A questão da união nacional, da identidade ao redor de um povo, é elevada e transmite uma forte mensagem -- por mais que Kleber Mendonça Filho, na coletiva de imprensa do filme, tenha negado que queira passar qualquer tipo de recado. É inegável a mensagem que surge ali e há um sentimento, represado no Brasil nesses últimos anos, que é substancialmente crescente. Há uma catarse, uma epifania.
Bacurau, assim, repete o feito de Aquarius. Volta a trazer a questão da resistência, é claro, mas investindo pesado também no olhar sobre o Brasil de hoje. É um filme incrivelmente moderno, potente. Se não for o representante do País do Oscar, vai ser mais um vexame do comitê que seleciona o indicado. Afinal, é um dos mais potentes filmes feitos no Brasil nos últimos tempos -- de longe. Vale assistir na tela grande.
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