O Brasil, de certa forma, está passando por uma nova catequização. Desta vez, porém, não são padres comungando índios a força. São pastores de igrejas evangélicas doutrinando seguidores e, em alguns casos, impedindo-os de consumir certos produtos culturais. É sobre este embate de forças e pensamentos que se debruça o bom longa-metragem Azougue Nazaré, do estreante Tiago Melo (produtor de Bacurau e Aquarius).
Na trama, passada na interessante cidade de Nazaré da Mata, vê-se o embate entre cultura e religião. Uma parte daquele povo se converteu à religião evangélica e passou a ouvir os ensinamentos do pastor (Mestre Barachinha). Do outro lado, moradores continuam a viver respirando a cultura daquela região, muito baseada no maracatu. É a deixa para ser travado o embate polarizado entre religiosos e praticantes do maracatu.
No meio disso tudo está o casal Catita (Valmir do Côco) e Irmã Darlene (Joana Gatis). Ele vive no maracatu, sempre vestindo de mulher e aproveitando o melhor da vida. Ela, enquanto isso, ouve tudo o que o pastor fala e busca não decepcionar seus irmãos -- na casa dela, nada de maracatu, bebida e coisas do tipo. Por isso, Catita acaba vivendo nas sombras, numa vida escondida, para conseguir manter o casamento e ainda ser feliz.
Melo, habilmente, não começa contando a história desse casal de maneira crua e direta. O cineasta mostra, inicialmente, a cultura daquele lugar e a forma como a cidade se relaciona e acontece no dia a dia. Aos vinte minutos de projeção, o espectador já está imerso naquele ecossistema. Por isso, não é nem um pouco difícil entender a dinâmica de Catita e Darlene. E, principalmente, tomar um dos lados daquela equação dissonante.
Com uma atuação potente do talentoso Valmir do Côco (visto recentemente em Bacurau), cria-se uma trama de resistência, valorização da cultura e até sobre o que é, de fato, um relacionamento. A forma como as coisas se desenvolvem, e a paixão exacerbada de Catita pelo maracatu, contribuem para criar uma trama que questiona o embate entre religião e cultura. E, principalmente, o mal dessa nova evangelização.
A temática, assim, acaba seguindo os passos de alguns filmes recentes, como no belo documentário Ex-Pajé, de Luiz Bolognesi, e no fraco Divino Amor, visto no começo do ano. É um embate fácil de ser identificado e que começa a ganhar força no cinema nacional. E nada mais interessante de analisar. Afinal, é maravilhoso quando a realidade e o cinema conversam de maneira tão intensa, criativa, diversa e produtiva.
No entanto, Azougue Nazaré perde um pouco de força quando começa a acrescentar elementos místicos, sobrenaturais e folclóricos na narrativa -- inclusive, também, quando insere a trama de pessoas raivosas com um "macumbeiro" da região. Parece que a tentativa de forçar a temática da narrativa para quem ainda não a compreendeu totalmente. Assim, o filme acaba tendo um inchaço desnecessário. Dava pra tirar isso.
O resultado final, porém, é mais que positivo. De forma natural e verdadeira, Azougue Nazaré mostra uma realidade brasileira que começa a preocupar. Não há problema das pessoas seguirem suas religiões, suas crenças. Seja quais forem. O problema surge quando a cultura de um lugar começa a ser sobreposta e demonizada. O grito de Catita, reafirmando seu nome de maracatu, é o grito que todo brasileiro precisa hoje em dia.
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