Laessio Rodrigues de Oliveira é quase uma lenda. Ex- pizzaiolo e morador de São Bernardo do Campo, ele desenvolveu uma obsessão por Carmem Miranda que, com o tempo, foi para as páginas policiais. Como? Roubou revistas sobre a cantora e acabou criando um mercado paralelo para venda de livros e gravuras raras roubadas de bibliotecas públicas -- indo de Debret a Rugendas. Agora, ele sai das colunas policiais dos jornais e vai parar nas telonas com o excepcional documentário Cartas para um Ladrão de Livros, que chega aos cinemas nesta quinta, 1.
Dirigido pelos jovens Carlos Juliano Barros e Caio Cavechini, Cartas para um Ladrão de Livros não é um documentário simples num primeiro momento. Afinal, a dupla decidiu contar a história com uma narrativa que não se atém à temporalidades, já que as idas e vindas de Laessio na prisão impedem isso. “Resolvemos contar a história com cartas que trocamos com ele como decisão narrativa e, também, para preencher os vazios que Laessio deixava ao ser preso”, conta Cavechini à reportagem do Esquina. “É quase uma costura entre as entrevistas.
Isso fica visível na tela e causa uma certa confusão. Afinal, num primeiro momento, vemos Laessio livre e festejando. No outro, volta a ficar preso e para a gravação do documentário por três anos. É um ritmo difícil de acostumar, mas que não poderia ser diferente. Laessio é inconstante e um filme sobre sua vida não poderia deixar de ser também. A compreensão do formato que a história segue só é concretizado com cerca de vinte minutos de filme, ao ficar claro quem é Laessio. Como disse no começo, é uma quase lenda urbana de grandes particularidades.
E o documentário, felizmente, consegue abordar isso com precisão. Além do tom irregular já citado, Carlos Juliano e Cavechini dão toda a dimensão da “vida louca” do ladrão de livros com camadas que vão se sobrepondo com o decorrer da narrativa. Aos poucos e com boas entrevistas, vamos entendendo como ele vive, com quem se relaciona e, mais importante, como se relaciona com os outros. “Laessio é um personagem singular”, diz Carlos Juliano, que se correspondeu com o criminoso. “A gente se preocupou em mostrar todos pontos de importância em sua vida.”
Mais importante, porém, é que a dupla de diretores não glamouriza as atitudes de Laessio -- ainda que haja alguns eufemismos em suas atitudes no trato dos diretores. Eles mostram os desvios de caráter do personagem-protagonista sem medo de expôr ou errar na mão, coisa que não acontece em momento algum. A possibilidade de intervir na história também é bem restrita, permitindo que Laessio se mostre. É acertada, também, a escolha de colocar outros poucos entrevistados. Só a diretora do Acervo Nacional, quase uma arqui inimiga do ladrão, já basta.
“O próprio uso da carta também é uma mostra de como nossa relação foi construída com Laessio e como ele foi se comportando conforme conversamos mais com ele”, disse Carlos Juliano ao Esquina. “Afinal, além de mostrar aspectos da própria relação entre jornalista e fonte, as cartas conseguiram mostrar alguns aspectos internos de Laessio que não puderam ser vistos nas entrevistas. Ali, era possível ver todas as atitudes e interpretações que ele permite.”
Além disso, Cartas para um Ladrão de Livros consegue transitar, com elegância, entre um retrato íntimo de Laessio e uma compreensão maior do sistema social brasileiro. Mais do que um perfil, o longa-documentário traça paralelos importantes e que levam à uma reflexão quase imediata e natural. Vale ressaltar, também, que a dupla faz uma autocrítica ao não se isentar de mostrar como o filme foi criticado por usar verba pública para contar a história de um homem que roubou itens do patrimônio público. É interessante e verdadeiro na medida certa.
Só faltou um pouco mais de apuro estético. O filme tem um ar jornalístico muito denso, não dando margem para certas interpretações poéticas que algumas situações permitiam. A dupla de diretores acabou se ancorando em bonitas artes de transição para fazer isso, além da narrativa em cartas. Mas isso, no cinema, não basta. Falta algo de belo para se admirar, ainda que a história não tenha, no final, nada de belo. Ah, e o final é muito estranho. Ainda que obedeça à irregularidade da vida de Laessio, ele faz a péssima escolha de ter vários momentos prontos para o fim. É aquela sensação de "agora acabou" que é findada com mais um cena. Não precisava.
Cartas para um Ladrão de Livros, ainda assim, é o documentário mais justo que Laessio poderia ter. Tem um ritmo que acompanha sua vida sem rumo, mas que também se importa em mostrar as suas faces de variadas maneiras. Há exageros, eufemismos e falhas que não atrapalham a história. Exemplo importante de que, como às vezes, é muito importante tirar personagens das páginas policiais para entendê-los, examiná-los e, acima de tudo, humanizá-los. Ainda mais em tempos tão loucos onde pessoas reclamam de verba de financiamento de um filme. De um bom filme.
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